domingo, agosto 14, 2016
Nossa Senhora da Lapa
“Nos limites desta Freguesia, quase nos seus
confins, do lado poente e sul a confinar com a Freguesia de Várzea de Ovelha,
nas fraldas dos grossos e ásperos matos da serra da Aboboreira, na parte do
Sul, num cabeço do dito monte, no dia 13 de Maio de 1757, quase uma hora antes
do pôr do Sol, andando três criaturas de idade menor, de menos de 12 anos,
apascentando umas ovelhas no tal sítio chamado o Outeiro do Preiro, sem que
nada vissem, ouviram uma voz que as chamava, cada qual pelo seu nome. Duas
chamavam-se Maria e uma Tereza. Ao virarem o rosto, viram sobre umas ásperas
pedras uma mulher encostada às altas fragas, de mediana estatura, mas de tão
brilhante e resplandecente rosto que ficaram admiradas e logo lhes pareceu não
ser mulher desta terra. Aproximando-se dela, ainda que um tanto surpreendidas
de verem tal mulher e em tal sítio, foram por ela acolhidas com afagos,
convidando-as a aproximarem-se. Entretanto, advertiu-as que deveriam saudá-la.
Pegou na mão de uma, a que tinha ar de mais inocente, e á outra, retirou-lhe um
rosário que trazia ao pescoço e lançou-o ao céu, enquanto com elas falava. À
terceira, que era mais adulta, repreendeu-a do vício de falar do demónio. A
todas disse que, chegando aos locais onde residiam a todos pedissem que
jejuassem a pão e água nas primeiras Sextas-Feiras e Sábados. E que o mesmo
pedido fosse feito a toda a gente que encontrassem ou com elas falasse. Uma das
crianças, a mais faladora, perguntou-lhe quem era. Respondeu-lhe que depois de
cumprirem o que lhes pedira e de fazerem uma romaria durante nove dias
contínuos ao redor daqueles penedos em louvor de Nossa Senhora lhes diria quem
era. E as três meninas cumpriram o que lhes foi pedido. E mal deram a notícia,
apareceu logo muitas pessoas, umas de perto, outras de longe, e todas
consideraram que o acontecimento era um milagre.”
E o Abade da Folhada, continuou: “ O que eu vi e observei, dei conhecimento ao
mui Reverendíssimo Doutor Provisor deste bispado e pedi-lhe que mandasse
averiguar o caso judicialmente. O referido senhor ordenou que fosse eu a
observá-lo com prudência e que nada fosse desprezado. E empenhando-me a
averiguar o melhor que pude e a colher o que os outros diziam, não encontrei,
até ao presente, ninguém que contrariasse o que foi dito. Pelo contrário, encontrei
pessoas muito fidedignas que me disseram ser um milagre, quando de noite, algum
tempo atrás, se viu uma luz, no tal sítio, na véspera da Ascensão de Nossa
Senhora de Agosto. Essa luz, que apareceu quase à meia-noite, era tão
resplandecente que asseguram se podia ler uma carta à sua claridade à distância
de quase meia légua. Nunca se tinha observado tanta luz. Além deste e outros
testemunhos que recolhi, verifico que desde o ano passado ocorrem alguns
milagres e o maior é a multidão de gente que continuamente ocorre para aquele
sítio. Por consideração com o culto e devoção dessa gente, mandei colocar
naquele sítio uma estampa de Nossa Senhora da Lapa e uma cruz de pau.”
É que o impulso das crenças harmoniza-se sempre com
o mundo da vida, e Nossa Senhora da Lapa era, nessa altura, a única mão que
encontravam para fugir do infortúnio!
Mas
esta peregrinação de multidões só durou até à publicação do edital do Regimento
do Santo Ofício da Inquisição, aprovado, em alvará, no dia 14 de agosto de
1774, assinado por Adriano José de Carvalho e Mello e de “próprio motu, certa
Sciência, Poder Real, e Absoluto”, por D. José I, determinando:
“Todo aquelle
que venerar a imagem de algum defunto não beatificado ou canonizado por
autoridade da Igreja, posto que morresse em opinião de santidade será
asperamente repreendido… e degradado para Castro Marim ou Cidade de Miranda por
três anos…
Nas
mesmas penas incorrerá aquelle que sem as precisas licenças pozer ou mandar pôr
na sepultura do defunto alguma táboa, panno ou rotulo de milagres seus, ou
imagens de qualquer cousa pintada ou pendurada, e lhe pozer alampada ou outro
lume, ou lhe der outro algum culto ou veneração”.
Logo que esse edital foi colocado na Porta da Igreja
e lido pelo Abade deixaram de se ver as multidões de devotos. A partir dessa
altura, mal os primeiros raios de Sol secavam as últimas gotas de orvalho que
humedeciam as flores colocadas nas campas das videntes, a coberto da escuridão
da noite pelos seus devotos, o coveiro tinha
ordens para as retirar e levá-los para o
mais longínquo possível. O Abade da Folhada, José Franco Bravo, receava que o
meirinho, os muitos milhares de informadores
do Secretário do Reino ou algum visitador da freguesia ou mesmo o Abade de
Jazente, Paulino Cabral, amigo do Marquês e com um irmão juiz no Santo Ofício, desconfiasse
que a ordem de Sebastião José não estava a ser cumprida.
O Abade levava muito a sério o que na altura se
dizia: “Onde Sebastião de Carvalho e Mello pousar a mão para dar uma ordem
ficam nódoas de sague.”
Foi, assim, que se perdeu no tempo esta devoção, só
recuperada recentemente.
In: “As minhas Raízes”