quarta-feira, outubro 09, 2013

 

No “festim”, a função pública é o bombo.

Enviei para o Semanário Grande Porto o seguinte texto: Obama chamou-lhes “sacos de murros”, mas, entre nós, há uma expressão mais significativa: “bombos da festa”! Refiro-me aos funcionários públicos. Durante o fascismo, os funcionários públicos tinham a sua carreira profissional protegida e prestigiada. Reconhecia-se a sua elevada competência e serviam de referência para o sector privado. Nesta carreira, estiveram historiadores, romancistas, poetas e artistas. Seria de esperar que a democracia lhes confirmasse esse reconhecimento e dignificasse, como merecem, o seu papel de servidores do Estado, atribuindo-lhes meios técnicos, salários de referência e segurança no desempenho das suas funções. E, ainda, que o saber e a experiência que foram acumulando fossem aproveitados para, independentemente dos partidos que estivessem no governo, assessorarem a gestão da “coisa-pública” com pareceres técnicos e estudos, uma vez que só eles conhecem por dentro os grandes problemas da administração pública. Mas, em nome da confiança política, o chamado “arco do poder” começou a nomear os seus “boys” para cargos de direcção dos organismos públicos e, rapidamente, o poder do Estado foi substituído pelo poder de interesses privados, incrustados aos governos, através de gabinetes de advogados, consultorias e assessorias. Foi dito pelos representantes da Troika que não eram eles que indicavam o plano dos cortes, mas apenas o montantes dos mesmos. O governo fez uma opção: não toca nos privilegiados e nem no tempo de Salazar seria possível tanta malfeitoria aos que menos têm, nomeadamente reformados, viúvos e funcionários públicos. E essa opção tem uma justificação inequívoca: como refere Gustavo Sampaio, no seu livro “Os privilegiados”, dos 230 deputados, 117 acumulam as funções parlamentares com outras atividades profissionais no sector privado, e, em muitos casos, em empresas que prestam serviços de consultoria ao próprio Estado. No índice PSI 20, das 20 empresas cotadas, 16 têm, em cargos de administração, ex-políticos. O número de beneficiários de subvenções vitalícias continua a aumentar. Etc. O “festim” atingiu dimensões obscenas: o Estado passou a pagar exorbitâncias a consultores, gabinetes de estudo e assessores que são comissários dos interesses de grandes empresas, multinacionais, etc. E estas vão premiando ex-governantes com cargos de topo nos seus negócios com uma intenção óbvia. E o cinismo não fica por aqui: os jornais e as televisões transformam estes ex-governantes nos comentadores que sabem tudo o que o governo, os sindicatos e a oposição devem fazer. É neste contexto que os funcionários públicos são humilhados e se vai alargando o pensamento único, o dos que julgam que se pode agarrar na porcaria sem sujar as mãos: alheiam-se do esbulho causado pelas rendas das PPP, dos swaps, da EDP, das petrolíferas e dos roubos do BPN e do BPP. Aceitam, como inscrito nos astros, os cortes na saúde, na educação e os saques feitos aos reformados e até aos próprios mortos, apropriando-se dos sacrifícios que estes fizeram para deixar algum património ao seu companheiro de vida. Colocam trabalhadores públicos contra os do privado e não querem saber da importância da dignificação duma função pública isenta e competente para a qualidade dos serviços que o Estado presta. Repetem que não temos recursos para o estado social que temos e não se importam com as consequências que advêm do Estado estar capturado por interesses privados. Assobiam para o lado perante a crescente erosão dos valores que marcaram a nossa civilização depois do holocausto: os valores onde se apoiam os direitos sociais, políticos e cívicos. E não lhes repugna que a democracia se vá tornando num regime que permite o triunfo dos chicos-espertos e onde a corrupção se esconde na bandeira da “vontade do povo”. O mal-estar social vai crescendo: a abstenção subiu para 47% e quase 7% de votos tiveram de ser considerados nulos, porque, entre outras situações, apareceram com insultos e desenhos pornográficos. E quem não quer viver a vida como precário, adiar constantemente o seu futuro, só tem uma solução: seguir o cínico apelo deste governo: emigrar. Nestas circunstâncias, é inevitável o crescimento da onda de antipartidarismo. Mas o que ele significa de verdade é a revolta contra os senhores da gamela, contra a promiscuidade entre os interesses privados e interesses públicos, contra um governo capturado por interesses privados e que dia a dia se vai tornando mais injusto, agravando cada vez mais o sofrimento dos que mais sofrem. Será que não se percebe isto?

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