quarta-feira, fevereiro 20, 2013

 

Os deserdados da Troika

Escrevi para o Semanário Grande Porto o seguinte texto:

“O Inferno está na palavra solidão”, escreveu Vítor Hugo.

O contexto em que lhe saiu esta afirmação tem muitas semelhanças com o período que, dois séculos depois de ter escrito “Os Miseráveis”, se vive.

A personagem central da obra, João Valjean, foi preso por roubar um pão para alimentar a família e, quando saiu da prisão, foi condenado a trabalhar nas galés.

É significativo que hoje também seja mais perigoso roubar um pão do que roubar um banco.

Os que ficaram sem pão, sem trabalho, sem habitação, constituem, hoje, os deserdados da Troika. O seu futuro está bloqueado não só, pelo desemprego e pela pobreza, mas, sobretudo, pela impossibilidade de criar expectativas. Foram desinscritos das preocupações do Governo. Este não os ouve, manda-os emigrar ou empobrecer, não respeita as suas organizações de classe, coloca novos contra velhos, desempregados contra quem trabalha, funcionários públicos contra privados, norte contra sul, interior contra litoral, estilhaçando os elos que faziam de nós um corpo solidário e, fazendo tábua rasa da Lei fundamental, deixou-nos sozinhos, entregues ao arbítrio.

Em tudo isto está a solidão e não o ficar só! Vivo a solidão, quando a palavra não me protege de estar só, quando o espaço público da minha representação está vazio, quando na palavra sofrimento o Governo não vê angústia, na palavra desemprego não vê perda de sentido para a vida; na palavra despejo não vê desprezo; e na palavra miséria não vê o choro de uma criança.

A solidão é sentida na condição de quem é desprezado, desenraizado, sem direito a um espaço público onde seja possível confrontar razões e acolher sentimentos.

É esta solidão que transparece na abissal diferença entre as manifestações que ultimamente se deram e as que aconteceram logo após o 25 de Abril.

Nessa altura, a noite negra da fome, da opressão e da mentira estava para trás e os olhos dos manifestantes brilhavam no olhar para a frente, a fazer da rua um poema de esperança num mundo mais justo, mais humano e mais livre.

Hoje, as enormes ondas de manifestantes trazem olhares sem distância, vazios de expectativas e nos rostos está gravada a revolta e o medo, o terrível medo do dia de amanhã. Pouca atenção dão aos discursos: sentem que as palavras perderam significado, não incarnam a vida, não firmam compromissos, não constroem diálogos nem criam horizontes de sentido. Terminado o desfile, vão regressando a casa em silêncio, de olhos no chão, sem cruzarem ideias, fazendo lembrar o Salmo 31-13 da Bíblia: “Estou esquecido no coração deles, como um morto. Sou como vaso quebrado”.

Só nos media há espaço público e só quem a eles tem acesso de forma professoral (e são sempre os mesmos) pode dar às palavras força para serem ouvidas e condicionar o rumo da política. Os outros são os deserdados da troika, os que têm o seu espaço público reduzido ao tempo que as televisões dedicam às manifestações e aos protestos. E, aqui, para os media, o que conta é o espetáculo, só ele tem valor de cidadania.

A democracia surgiu para que a palavra substituísse a solidão. Não sei que nome pode ter um regime, onde só ganha poder e tem valor de cidadania o espetáculo do protesto. E é ainda mais preocupante, quando a espiral de protestos cresce como se não tivéssemos um governo, mas um grupo de malfeitores.

Entre os comentadores de serviço, surgem os ex-governantes em pânico, insurgindo-se contra as formas de que se revestem os protestos e assegurando que isso é intolerável num Estado de direito. Mas que imagem de Estado de direito pode dar e fazer respeitar quem quebra todos os compromissos que estabelece com os eleitores e trata os cidadãos como meros números de uma engrenagem?

Será que sobre isto, o Presidente da República, responsável pelo regular funcionamento das Instituições, também pensará que o melhor é fazer como a avestruz?!...

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