quinta-feira, abril 05, 2012

 

A ética como arma de cinismo

Escrevi para o Semanário Grande Porto o seguinte texto:

O conceito que mais se ouve na boca dos governantes, particularmente ao Ministro da Solidariedade, é “ética da austeridade” ou, então, “ética social da austeridade”.

Envolver a ética na austeridade é levar o cinismo ao insuportável. A ética está do lado oposto à austeridade.

Visa tornar o homem feliz e senhor do seu próprio destino, evitando o sofrimento e a diminuição da sua dignidade. Por alguma razão se considera que tempos de crise são tempos maus.

Somos o país onde a discrepância entre ricos e pobres é maior. A crise poderia ajudar a reduzir esse fosso que não dá dignidade ética ao Estado, mas só tem servido para acentuar injustiças.

A austeridade está a ser o rolo compressor que esmaga os mais pobres e a classe média. Embora a retórica e a propaganda façam crer o contrário, o que se verifica na prática é um desprezo chocante pelo princípio da equidade na distribuição de sacrifícios.

Mas não há só uma contradição na própria natureza do conceito “ética da austeridade”: o próprio Governo com essa expressão parece fazer crer que é um valor o desemprego, a pobreza, o apoucamento dos Funcionários Públicos (os únicos a quem foram retirados o 13º mês e o subsídio de férias), o associar o rendimento mínimo à ideia de vadiagem, a ausência de justiça social, a arbitrariedade dos cortes e, ainda, o convite à desterritorização pela emigração. E isso raia a obscenidade.

Os mais pobres, os mais carenciados são, em qualquer circunstância, sujeitos de direitos e o direito é dar a cada um o que lhe pertence, a ter como sua casa a Terra onde nasceu, nasceram os seus pais e criou os seus filhos. Não é a generosidade farisaica ou o empurrão para “fora de casa”.

Retirar direitos e, em seguida, falar em “ética social da austeridade” é de um cinismo insuportável que só se explica por uma estratégia de manipulação e populismo. O governo liga o conceito de ética á palavra austeridade para fazer dessa mistura uma “palavra-armadilha”: caça os mais incautos pela crença de que a austeridade é uma virtude e que não é a obrigação de um Estado de direito diminuir o sofrimento dos que mais sofrem.

Contra esta impostura, convém lembrar que a ética, sendo uma reflexão sobre a moral (o que está na ordem dos costumes), visa promover uma postura pessoal que se harmonize com a formação de um bom carácter, o que corresponde a uma personalidade integra.

Não há ausência de ética mais perversa do que o cinismo de usá-la como arma política de arremesso contra os mais pobres, os que todos os dias vão perdendo direitos que foram conquistados à medida que foi conquistado o próprio direito a viver em democracia.

Por alguma razão, perder direitos é diminuir o essencial da democracia.

A crise que vivemos é não só financeira, mas também de valores, de sentido de estado e do próprio regime democrático

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