quinta-feira, fevereiro 09, 2012

 

A propósito do 31 de Janeiro

Enviei para o Semanário Grande Porto o seguinte texto:

A celebração de um aniversário tem uma carga afectiva e simbólica. Significa que, naquele dia, se reconhece a felicidade de existir e representa uma ligação afectiva às raízes: família, amigos e terra que nos viu nascer e crescer.

Tal como na nossa vida pessoal, assim acontece com as datas que marcam a nossa história colectiva. Celebrá-las é promover a ligação afectiva ao acontecimento que lhes diz respeito e exaltar os valores que lhes estão associados.

Por alguma razão, durante o fascismo, o 31 de Janeiro e o 5 de Outubro serviram de bandeira à causa da liberdade, da justiça e da dignidade.

No tempo de Salazar, mesmo com uma repressão feroz, os democratas do Porto celebravam o 31 de Janeiro com uma romagem ao cemitério do Prado de Repouso para colocar, junto ao Monumento dos Vencidos, erguido durante a República, uma coroa de flores. Prestavam não só homenagem aos generosos sargentos e intelectuais do Porto, como Alves da Veiga, Basílio Teles, Sampaio Bruno, Rodrigues de Freitas e tantos outros que, naquela data, em 1891, se revoltaram contra uma Monarquia que deixou humilhar a Pátria com o Ultimato Inglês de 1890, mas também apelavam ao seu exemplo na afirmação da nossa dignidade como povo e na luta pela liberdade e justiça social.

O simples facto de se alterar a toponímia, passando a designar a Rua 31 de Janeiro por Rua Santo António, foi motivo de fortes protestos, com manifestações de rua e prisões. O valor simbólico desta data é bem patente nos milhares de pessoas que, por exemplo, em 1960 compareceram no cemitério do Prado de Repouso e, indiferentes às perseguições, enfrentaram polícias armados com metralhadoras, bombas de gás e auto-tanques que disparavam jactos de água com tinta azul para dispersar a multidão e assinalar à PIDE os envolvidos no protesto.

Situações semelhantes aconteceram com a invocação do 5 de Outubro nos grandes comícios de exaltação dos valores republicanos no Coliseu do Porto.

Um povo sem referências históricas, sem celebrar as suas tradições, é um povo sem alma, sem identidade, desenraizado e transformado num mero aglomerado de gente. E o trabalho, quando a vida colectiva não lhe dá um sentido, é mero exercício despersonalizado, alienante e depressivo.

Este Governo, ao invocar a austeridade para obscurecer as referências da nossa história e desvalorizar as tradições que cimentam os laços da nossa identidade, não só apaga horizontes de sentido à nossa vida colectiva, como reforça a humilhação deprimente de estarmos sujeitos ao protectorado da Troika.

Como é possível que um primeiro-ministro despreze investir no capital patriótico das datas mais significativas da nossa história e diga que “não estamos em tempo de falar de tradições”?!... Como quererá Passos Coelho mobilizar os portugueses para a compreensão dos sacrifícios que lhes pede, sem invocar o testemunho da exemplaridade de acontecimentos ou recusando o papel das tradições na coesão social?

Um povo não é uma soma de indivíduos, a governação não se reduz a meras equações de contabilidade e a política não pode ser uma esquizofrénica racionalidade de conveniência.

O pior que aconteceu neste País foi, na educação, se ter retirado das ciências matemáticas e experimentais as ciências humanas.

Fazem-nos falta políticos cultos, com uma dimensão humana e capazes de compreender e respeitar o espírito de um povo.

Os portugueses precisam de sentir orgulho de serem portugueses e desavisado é um governo que trespassa as referências da nossa vida colectiva e promove o esvaziamento das nossas tradições, tornando-nos estrangeiros no nosso próprio País.

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