quarta-feira, novembro 30, 2011

 

O ideal europeu

Enviei para o Semanário Grande Porto, o seguinte texto:

Passaram-se 25 anos sobre a adesão de Portugal à Comunidade Europeia. O sonho de uma Europa unida é muito antigo. Inspirou-se num ideal de paz, solidariedade e humanismo por oposição à guerra, ao egoísmo e à barbárie.

O primeiro a ter essa ideia foi o Abade Saint-Pierre. Num ensaio com o título “Tornar a paz perpétua” (1717) considera que a dupla ambição dos governos de “expandir a força para além fronteiras e ao mesmo tempo tornar absoluta a dominação interna” não se corrige “procurando ser sensato entre loucos”, mas com a instituição de relações entre os povos da Europa baseada em princípios que promovam “uma doce e sossegada sociedade de irmãos, vivendo em concórdia eterna, conduzidos pelas mesmas máximas, todos felizes com a felicidade comum”.

Este ideal, enraizado no mais profundo sentimento cristão (já quase esquecido), foi sublinhado por Rousseau, a quem coube reeditar o ensaio de Saint-Pierre. Adverte, no entanto, para a necessidade de salvaguardar a soberania dos pequenos Estados. No seu entender, os grandes Estados têm tendências hegemónicas que só podem ser contrariadas pela”primazia da política sobre os interesses”. Advoga “um pacto de associação e não de sujeição” que garanta a cada Estado direitos semelhantes ao que o Contrato Social estabelece com os indivíduos.

Poucos anos depois (1795), Immanuel Kant, inspirado em Saint-Pierre, escreve “A paz perpétua”. Neste opúsculo, defende uma sociedade das nações, formada por um conjunto de Estados com constituições democráticas, com o objectivo político de construir uma paz perpétua, baseada na segurança, no respeito recíproco e na liberdade. Acredita que a interdependência em torno de interesses comuns tem virtudes: propicia a renúncia ao expansionismo militarista, evita a primazia de um Estado sobre outros, promove a protecção, a paz e o desenvolvimento do comércio.

Contrariando Rousseau, que privilegiava o respeito pela soberania dos pequenos Estados, defende um federalismo, fundado na instituição de laços permanentes entre os Estados. Para Kant, só a perda de alguma soberania poderia reforçar a “sociedade das nações”, permitindo uma paz perpétua, apoiada em três princípios: resolver conflitos de interesses, sem permitir egoísmos; preservar a liberdade, sem cair na anarquia; manter a segurança, sem cair na tirania.

Após a barbárie da Segunda Guerra Mundial, políticos como Jean Monet e estadistas, como Robert Schuman, Adenauer e Churchill, inspiraram-se nesse legado filosófico para institucionalizarem uma integração de Estados Europeus, como forma de contrariar o chauvinismo belicista e abrir um espaço de liberdade, segurança, justiça, defesa da dignidade da pessoa humana e cooperação no desenvolvimento.

Aproveitando uma ideia de Jean Monet, a produção de carvão e aço de países outrora inimigos passou a ter uma autoridade comum na CECA (1950). Sete anos depois, surgiu o Tratado de Roma e foi criada a CEE; em 1992 surgiu o tratado de Maastricht que instituiu a União Europeia. Seguiu-se a moeda única, o Tratado de Nice (2001) e o Tratado de Lisboa (2007).

A União Europeia tornou-se numa região rica e de bem-estar social. Isso deveu-se a um pensamento político que privilegiou a dignidade humana, o bem-estar, a paz e o progresso. Não foi um produto da tecnocracia, nem da engenharia financeira e muito menos da pragmática troikiana.

A crise que, actualmente, a Europa vive tem tudo a ver com o desprezo pelo pensamento e valores que a configuraram.

Significa o abandono do pensamento humanista, a desvalorização do papel do Estado, a subordinação neoliberal da política ao mercado, a captura dos Estados pelos fundos financeiros, a incapacidade de monitorizar Tratados, de enfrentar riscos comuns e de contrariar o descalabro financeiro que degrada os valores do trabalho e da vida em sociedade, afundando a Unidade Europeia numa desagregação iminente.

Se não for contrariada esta situação, que consequências advirão?

A resposta atira-nos para os receios de Mário Soares, receios que o Abade Saint-Pierre, Rousseau, Kant e os fundadores da Comunidade Europeia procuraram combater e que, agora, são desdenhados, por políticos menores.

Não haja dúvidas!

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