sexta-feira, novembro 27, 2009
“Escutas cruzadas”
Escrevi, hoje, no Semanário Grande Porto” o seguinte texto
Numa altura em que era presidente da Direcção dos Bombeiros Voluntários do Marco de Canaveses, tive de tomar posição numa divergência contra o presidente da Câmara, Avelino Ferreira Torres.
O assunto estava, para mim, esquecido, quando surgiu uma festa de Natal, no Cine-Teatro que pertencia àquela corporação. Não estive nessa festa. Soube, depois, que, com grande estrondo, Avelino aproveitou o ensejo para, no palco, fazer, em tom grave, a seguinte advertência: “Enquanto esse senhor (que era eu) for presidente desta casa, a Câmara não dará um tostão aos Bombeiros”.
Essa forma de pensar o serviço público como uma coutada instalou-se na cultura política em Portugal. E a lógica que preside à distribuição de apoios às freguesias, entrega de subsídios às colectividades, adjudicação de obras (sem concurso público) a apaniguados, atribuir publicidade de forma discriminatória, etc., etc., está de harmonia com esse pensar: quem está com o presidente tem apoios, recebe subsídios, é privilegiado na adjudicação de obras públicas e fica com a publicidade mais rentável; quem critica o seu trabalho é um inimigo que deve ser tratado em conformidade.
Este estilo de entender a gestão da “coisa pública” também funciona no interior dos partidos, serve de cobertura ao que Guterres chamou “jobs for the boys”, alimenta muita corrupção e faz o descrédito dos políticos e das instituições.
Não sei se essa estória das escutas cruzadas que apanharam o Primeiro Ministro têm ou não algumas semelhanças com o caso que referi no início. Mas, atendendo ao currículo de Sócrates, não é displicente pensar-se que o Juiz e o Procurador, que têm a seu cargo o processo “Face Oculta”, apanhassem nas chamadas “escutas cruzadas” matéria que indiciasse que o Primeiro Ministro estava a comportar-se com Manuela Moura Guedes, com os jornais “Público” e o “Sol” da mesma forma que Avelino se comportou com o presidente dos Bombeiros Voluntários do Marco.
Naturalmente, nem a lei nem os factos falam por si e é sempre possível dar-lhes uma interpretação conveniente. Mas a legalidade da decisão de arquivar as escutas não torna o conteúdo das mesmas politicamente legítimo. É que em democracia não vale tudo, nem há uma delegação de poderes sem o controlo dos mesmos.
Se tomarmos para reflexão a democracia ateniense, a primeira que conhecemos, sabemos que este regime se impôs por ser a única forma de não deixar chegar ao poder déspotas, demagogos ou tiranos, sem derramamento de sangue. E porquê? Porque era o único regime que permitia a crítica, como controlo do poder pelos cidadãos, obrigando os governos a reflectirem sobre a hipótese de estarem a fazer algo que causasse danos, não servisse o bem-comum ou não fosse o melhor para os cidadãos. Em democracia é essencial a consciência de responsabilidade. E isso significa ter capacidade para responder com verdade a uma acusação e não sofismar demagogicamente as questões ou perseguir os críticos.
Insistimos que não sabemos se a estória das escutas aproxima-se da situação que referi no início. De qualquer forma, em vez da liderança do PS provocar um alvoroço trauliteiro, que só acaba por apoucar a Justiça e a investigação policial (enfraquecendo o papel das instituições num Estado de direito), seria melhor que discutisse o que é o interesse-comum e definisse os critérios a que deve obedecer a atribuição de apoios, subsídios, adjudicações e publicidade, estabelecendo, por exemplo, a obrigação das instituições públicas criarem regras para essas atribuições na altura da discussão dos orçamentos. Parece-me que desta forma se evitaria muita prepotência, muita demagogia, muito caciquismo e muita corrupção; e se daria um bom contributo para aprofundar a democracia, dignificar as instituições e dar sentido à cidadania.
Não é isso que acontece! Esquecendo-se o velho princípio de que “à mulher de César não basta ser séria, mas também é preciso que pareça”, não só, é recusada uma explicação política para o arquivamento e destruição das escutas, como se “deixa no ar” as especulações que mais fragilizam o normal funcionamento das instituições e pervertem o regime.
De nada acalma a poeirada lançada pelo PS com insinuações e acusações, que encenam uma vitimização, muitas vezes de uma hipocrisia confrangedora. Tudo isso só serve para aumentar o ruído e promover suspeições que colocam o País cada vez mais próximo da promiscuidade entre poderes que conhecemos em países do terceiro-mundo.
As escutas que envolvem o Primeiro Ministro possivelmente serão conhecidas no final do processo “Face Oculta”. Pode acontecer que se considere não terem ferido o espírito da lei, mas nem tudo o que não é ilegal é legítimo e só o que é legítimo é eticamente responsável, dando força e confiança aos cidadãos.
Precisamos de ter confiança nas instituições para encontrar um rumo para o nosso destino colectivo. Mas para isso é necessário que se respeite o direito fundamental da dignidade cívica: o direito à crítica, a exigir transparência nos actos dos governantes e ser esclarecido de tudo aquilo que causa preocupação pública.
Numa altura em que era presidente da Direcção dos Bombeiros Voluntários do Marco de Canaveses, tive de tomar posição numa divergência contra o presidente da Câmara, Avelino Ferreira Torres.
O assunto estava, para mim, esquecido, quando surgiu uma festa de Natal, no Cine-Teatro que pertencia àquela corporação. Não estive nessa festa. Soube, depois, que, com grande estrondo, Avelino aproveitou o ensejo para, no palco, fazer, em tom grave, a seguinte advertência: “Enquanto esse senhor (que era eu) for presidente desta casa, a Câmara não dará um tostão aos Bombeiros”.
Essa forma de pensar o serviço público como uma coutada instalou-se na cultura política em Portugal. E a lógica que preside à distribuição de apoios às freguesias, entrega de subsídios às colectividades, adjudicação de obras (sem concurso público) a apaniguados, atribuir publicidade de forma discriminatória, etc., etc., está de harmonia com esse pensar: quem está com o presidente tem apoios, recebe subsídios, é privilegiado na adjudicação de obras públicas e fica com a publicidade mais rentável; quem critica o seu trabalho é um inimigo que deve ser tratado em conformidade.
Este estilo de entender a gestão da “coisa pública” também funciona no interior dos partidos, serve de cobertura ao que Guterres chamou “jobs for the boys”, alimenta muita corrupção e faz o descrédito dos políticos e das instituições.
Não sei se essa estória das escutas cruzadas que apanharam o Primeiro Ministro têm ou não algumas semelhanças com o caso que referi no início. Mas, atendendo ao currículo de Sócrates, não é displicente pensar-se que o Juiz e o Procurador, que têm a seu cargo o processo “Face Oculta”, apanhassem nas chamadas “escutas cruzadas” matéria que indiciasse que o Primeiro Ministro estava a comportar-se com Manuela Moura Guedes, com os jornais “Público” e o “Sol” da mesma forma que Avelino se comportou com o presidente dos Bombeiros Voluntários do Marco.
Naturalmente, nem a lei nem os factos falam por si e é sempre possível dar-lhes uma interpretação conveniente. Mas a legalidade da decisão de arquivar as escutas não torna o conteúdo das mesmas politicamente legítimo. É que em democracia não vale tudo, nem há uma delegação de poderes sem o controlo dos mesmos.
Se tomarmos para reflexão a democracia ateniense, a primeira que conhecemos, sabemos que este regime se impôs por ser a única forma de não deixar chegar ao poder déspotas, demagogos ou tiranos, sem derramamento de sangue. E porquê? Porque era o único regime que permitia a crítica, como controlo do poder pelos cidadãos, obrigando os governos a reflectirem sobre a hipótese de estarem a fazer algo que causasse danos, não servisse o bem-comum ou não fosse o melhor para os cidadãos. Em democracia é essencial a consciência de responsabilidade. E isso significa ter capacidade para responder com verdade a uma acusação e não sofismar demagogicamente as questões ou perseguir os críticos.
Insistimos que não sabemos se a estória das escutas aproxima-se da situação que referi no início. De qualquer forma, em vez da liderança do PS provocar um alvoroço trauliteiro, que só acaba por apoucar a Justiça e a investigação policial (enfraquecendo o papel das instituições num Estado de direito), seria melhor que discutisse o que é o interesse-comum e definisse os critérios a que deve obedecer a atribuição de apoios, subsídios, adjudicações e publicidade, estabelecendo, por exemplo, a obrigação das instituições públicas criarem regras para essas atribuições na altura da discussão dos orçamentos. Parece-me que desta forma se evitaria muita prepotência, muita demagogia, muito caciquismo e muita corrupção; e se daria um bom contributo para aprofundar a democracia, dignificar as instituições e dar sentido à cidadania.
Não é isso que acontece! Esquecendo-se o velho princípio de que “à mulher de César não basta ser séria, mas também é preciso que pareça”, não só, é recusada uma explicação política para o arquivamento e destruição das escutas, como se “deixa no ar” as especulações que mais fragilizam o normal funcionamento das instituições e pervertem o regime.
De nada acalma a poeirada lançada pelo PS com insinuações e acusações, que encenam uma vitimização, muitas vezes de uma hipocrisia confrangedora. Tudo isso só serve para aumentar o ruído e promover suspeições que colocam o País cada vez mais próximo da promiscuidade entre poderes que conhecemos em países do terceiro-mundo.
As escutas que envolvem o Primeiro Ministro possivelmente serão conhecidas no final do processo “Face Oculta”. Pode acontecer que se considere não terem ferido o espírito da lei, mas nem tudo o que não é ilegal é legítimo e só o que é legítimo é eticamente responsável, dando força e confiança aos cidadãos.
Precisamos de ter confiança nas instituições para encontrar um rumo para o nosso destino colectivo. Mas para isso é necessário que se respeite o direito fundamental da dignidade cívica: o direito à crítica, a exigir transparência nos actos dos governantes e ser esclarecido de tudo aquilo que causa preocupação pública.