segunda-feira, janeiro 12, 2009

 

CANÇÃO DA SAUDADE

Se eu fosse cego amava toda a gente.
Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gémea
que nasceu sem vida, e amo-a a fantasiá-la viva na minha idade.
Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde moras, dize se
vives ou se já nasceste.
Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada da galé que partia em
busca de outras galés perdidas em mares longíssimos.
Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes
apressadas.
Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e
nunca mais os meus olhos pararam nelas.
Eu amo os cemitérios - as lajens são espessas vidraças transparentes, e eu vejo
deitadas em leitos floridos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são
como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a
lua do lado que eu nunca vi.
Se eu fosse cego amava toda a gente.

Almada Negreiros

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