sábado, setembro 15, 2007

 
(...) A máquina do papai batia taque-taque... taque-taque-taque... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? Roupa-roupa-roupa. Não, não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta. Os três sons estavam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da árvore que se esfregavam umas nas outras radiantes.

Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se estivesse bem próxima de seu nariz a terra quente, tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sabia uma ou outra minhoca se espreguiçava antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer.

Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver. Só faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os olhos, fingiu escutá-lo e ao som da música inexistente e ritmada ergueu-se nas pontas dos pés. Deu três passos de dança bem leves, alados. (...)

- Papai, que é que eu faço ?

- Vá estudar.

- Já estudei.

- Vá brincar.

- Já brinquei.

- Então não amole !
(...)

Clarisse Lispector

IN: "Perto do Coração Selvagem"
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Enviado por Amélia Pais

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