quinta-feira, março 22, 2007

 

Revisitar um texto que vem a propósito.

Hoje, o “Público” noticia na primeira página: “cientista português prova relação entre a emoção e a moral humana”.

Fui dos que li o livro de António Damásio “ O Erro de Descartes”. Achei que a virtude de Damásio não foi a de ter uma intuição genial, mas a de saber aprofundar os mecanismos neurológicos de validação moral que já estavam presentes na seguinte afirmação de Pascal: “O coração tem razões que a razão desconhece”.

Sempre defendi que mais importante que uma educação para os valores é uma educação para os sentimentos. É nestes que estão as energias de validação do valor ou do desvalor.

Lembrei-me dum texto que escrevi, quando era director de turma. Passo a transcrevê-lo:


Para os Colegas Directores de Turma:

A questão da educação dos sentimentos surgiu na última reunião dos Directores de Turma, a propósito dos alunos que riscam as carteiras, as portas e as paredes das salas de aula.

Naturalmente, muitos de nós defenderam que a educação dos sentimentos é tarefa dos pais. Mas, se os pais, por falta de preparação ou egoísmo, não o fazem, será que os professores, a Escola, não terão uma palavra sobre tão importante matéria? Ou ficará para a polícia o pôr ordem nos sentimentos?

Propus-me, então, elaborar um texto que procurasse clarificar o que pretendia dizer com a necessidade da Escola reflectir a questão da educação dos sentimentos. Adverti que não sou contra a necessidade de regulamentos que imponham disciplina na Escola. Mas, os regulamentos só atacam os efeitos dos “maus” sentimentos e não as suas causas. E a Escola, por sua própria natureza, tem uma função pedagógica, alimenta-se do “princípio do dever” e não do “princípio da ordem”, que é apanágio duma Esquadra da Polícia.

Vamos, então, ao assunto que é propósito deste texto. Agarremos o problema pelo seu aspecto biológico. Tomemos, como ponto de partida, uma questão aparentemente banal e, com base nela, perguntemos a nós próprios: é melhor o sentimento de fome ou o sentimento de apetite?

Se aprofundarmos esta questão daremos conta de que a fome pertence ao mundo da necessidade, é uma emoção forte, instintiva, vem do mundo animal, enquanto o apetite situa-se no mundo do preferível, está ligado às escolhas requintadas, ao bom gosto, pertence às emoções adultas, é um prazer diferido, implica distanciamento e consciência do que se escolhe, coloca o problema da sua gestão, exigindo maturiade e responsabilidade.

Como vemos, um simples exemplo, como o de saber se é mais importante o sentimento de fome ou o de apetite, revela claramente a importância dos sentimentos nos comportamentos e, por via desse facto, salienta a necessidade de estabelecer equilíbrios entre o mundo privado e o público. Penso mesmo que não é só a agressividade manifestada no riscar as carteiras, nos palavrões ou na indisciplina que se prende à perturbação dos sentimentos: é o próprio sucesso ou insucesso escolar que está em causa.

Na verdade, a cultura do mais fácil, dos sentimentos imediatos, do individualismo e do hedonismo, é a cultura da necessidade, do mercado consumista e do vazio da esperança. Há que contrapôr a esta cultura, o sentido estético da vida, a cultura do preferível, do bom gosto, dos sentimentos de qualidade, do valor do trabalho, do saber viver com autenticidade e responsabilidade.

Se nos alunos o mundo dos seus sentimentos estiver desconfigurado e não lhes for possível desocultar as perversidades que escondem, como poderá ser saudável a sua relação com a Escola, os Professores, os seus colegas e o Mundo?

Mas, como educar os sentimentos? O que poderemos fazer nesta matéria?

Primeiro que tudo é preciso que os alunos saibam problematizar os seus sentimentos. Esta é a tarefa própria da Escola e isso não compete só aos professores de filosofia. Também os matemáticos, os biólogos e os físicos o podem fazer. Nos sentimentos há subtracções, créditos e energias que se perdem ou se ganham. As seitas religiosas sabem isso muito bem e, por isso, cobram dízimos.

Problematizemos, então:

Será a paixão uma obsessão? A maior generosidade (paixão) poderá ser envenenada por um impulso egoísta (a obsessão)?

Pode-se mentir nos afectos? O que é mentir numa relação afectiva? Quando tornamos o “outro” num objecto de satisfação dum sentimento, o nosso próprio sentimento será humanizado?

Os sentimentos podem manifestar-se directamente: agressividade, expressões obscenas, etc. Que esconde a agressividade, quando a agressividade é inútil? Será que os palavrões ou gestos obscenos traduzem a superioridade do pensamentos ou a bestialidade? Como se humaniza a expressão dos sentimentos?

Os sentimentos podem manifestar-se indirectamente: em vez de dizer que sinto inveja ou ciúme, digo: és um inútil. Porque não pomos qualidade nos sentimentos que carregam as nossas palavras? Será que discutir é destruir?

São estes, alguns exemplos que podem levar a problematizar a qualidade dos sentimentos. Os colegas descobrirão outros, por certo muito mais expressivos. O que importa é sensibilizarmo-nos para a necessidade de levar os alunos a pôr em questão os seus sentimentos. É pela educação dos sentimentos que se descobre, no meu entender, a amizade, a solidariedade, o sentido da disciplina, o imperativo do dever, o espírito do trabalho e se faz da vida um projecto.

Para que não seja preciso a nenhum jovem “fugir da vida” é necessário ajudá-los a compreender os seus próprios sentimentos, a aprender a saber educá-los por forma a desenvolver o gosto de viver, a vontade de trabalhar, o respeito por si próprios, pelos outros e pela vida; numa palavra, a ganhar o sentido estético de estar no mundo.

Como sugestão: propôr ao Conselho Pedagógico que anuncie um dia para ser “O dia da escolha dos bons sentimentos”. Nesse dia, cada Professor nas suas turmas problematizará uma questão que envolva a qualidade dos sentimentos, como, por exemplo: é melhor o sentimento de fome ou o sentimento de apetite?


Escola Alexandre Herculano, 11/2/ 1996
João Baptista Magalhães

Comments:
Ninguém comenta este texto... e eu gosto tanto deste tema!

É a vida!!!!...
 
Ontem fui ao Porto, depois duma manhã muito trabalhosa por aqui. Cheguei a casa muito tarde e extenuada. Ainda assim dei um pulo até esta margem e deixei dois pequeninos comentários. Não comentei este porque o texto é longo e merecia uma leitura que, atento o que descrevi, já não conseguia!! Mas estive para dizer "este comento amanhã". Não disse e olhe o que o primo aqui escreve!!! Pois bem, logo virei cá, com tempo, ler e comentar. Agora estou só de passagem.
 
Só uma Leonor pela verdura da manhã me daria esperança de debater este tema que me é tão querido.

Bem haja, leonor!
 
Haverá bons sentimentos sem bons valores? E bons valores sem bons sentimentos?
CR
 
Se entendermos a valoração como uma actividade do espírito que dá uma qualidade a algo que, em virtude dessa qualidade (um bem), nos transmite uma experiência de felicidade, naturalmente, a origem dos valores está nos bons sentimentos.

Só eles sabem desenvolver procedimentos que possam ter a qualidade que nos torna felizes.

Ao partilharmos racionalmente essa qualidade, configuramos-lhe um sentido de bondade, de beleza, de justiça ou até de verdade.

Ao encontramos o acordo entre as melhores razões, o valor subjectivo ganha a dimensão objectiva ou universal.

Ou então, seguindo o método de Kant (para encontrar um imperativo categórico), formulamos o seguinte juízo: «isto é bom, porque, colocando-me na pele dos outros, encontro um denominador comum -- todos acham que esse algo incorpora uma mais-valia que pode ser julgada como um bem -- agrada universalmente sem qualquer interesse».

Indutivamente, a partir de um sentimento, poderemos (segundo o contexto de uma época e de uma cultura) como se vê, ensinar a fazer um juízo universal que promove o que caracterizamos como o valor da bondade, da beleza ou até da própria verdade.

Os bons sentimentos desenvolvem boas qualidades que a razão universal, considera bem.
 
Veja a vadiagem, acabo de entrar em casa. Hoje foi por uma boa causa: o drama musical "Jesus Cristo" a cargo do colégio da Via Sacra e ao qual não podia faltar para satisfação do Pedro e encerramento do trimeste lectivo. Valeu a pena e estão todos de parabéns.

Portanto, vou agora ler isto tudo que é enorme e, caso não sucumba ao sono, ainda vou deixar-lhe a minha opinião que quase presumo ser, nesta matéria, muito semelhante à sua.
 
Eu diria, secalhar com demasiado atrevimento, que "ajudá-los a compreender os seus próprios sentimentos, a aprender a saber educá-los por forma a desenvolver o gosto de viver, a vontade de trabalhar, o respeito por si próprios, pelos outros e pela vida; numa palavra, a ganhar o sentido estético de estar no mundo" mais não é, parece-me, que tentar conseguir o completo dominio de si próprio - tarefa árdua ou, até mesmo, impossível. Lograr obter a serenidade da alma e um estado de espirito de tranquilidade interior? Eis um objectivo a que gostava de me candidatar!!! Como dizia Marco aurélio: "hás-de ser como uma rocha contra a qual nada podem as ondas do mar. Ela está firme e o mar acalma-se em volta dela." Que bom que seria se os professores conseguissem ser a rocha à volta da qual os alunos acalmam por fundamentadamente convictos do que lhes é trasnmitido. Nem sempre assim é. Acabam, muitas vezes, vencidos, mas não convencidos.

(Gosto sobremaneira estes seus textos e reparo que este tem 10 anos!!!)
 
É um tema que também gosto de problematizar. Os valores colocam questões tão importantes, como, p. ex., a de se saber se é ou não artificial a distinção entre factos e valores. E ainda se há valores relativos ou se os valores são medidas de avaliação culturais ou existem por si mesmos.
 
E problematizou q.b.
Coloca perguntas às quais não me atrevo, sequer, a ensaiar uma resposta fundamentada. Mas gostei de ler.
 
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