segunda-feira, novembro 06, 2006

 

Para que serve a cultura?!..

A propósito da “política cultural” de Rui Rio, escrevi, há tempos, o seguinte artigo que actualizo:

A cultura não é assunto de especialistas.


Não se exige, por isso, a quem exerce funções políticas no governo ou numa autarquia, que releia os clássicos, que assista a todos os espectáculos de teatro, que veja as exposições de Serralves, que saiba fruir Beethoven ou Bocelli, que goste de ouvir os Madredeus ou Camané, que seja apaixonado pelo cinema, que não perca um happening ou um concerto de rock e que esteja sempre presente em todos os colóquios ou conferências que procuram respostas para as grandes questões do nosso tempo. Ainda menos se exige que goste deste filósofo, daquele artista ou seja amigo deste cineasta, daquele músico e não de uns outros quaisquer. O que se pede a quem exerce funções políticas é que entenda a cultura como um serviço público tão vital como a luta contra a toxicodependência ou o insucesso escolar.

E porque é vital, significa que a cultura é útil à vida: educa as nossas emoções, fortalece o nosso espírito e promove mudanças para um melhor modo de entender a vida, o mundo e os outros. Foi esta a ideia que nos deixaram os clássicos, identificando a cultura com as humanidades, e é esta a ideia que nos transmite a própria sabedoria popular nos ensinamentos consubstanciados no património etnológico, folclórico e antropológico. Tanto num caso, como no outro, a cultura vincula-se ao mundo vivido e, por isso, encontramos nela uma dimensão ética: ajudar o homem a ser feliz no interior de um conceito de felicidade que promova a sua dignidade.

Uma "cultura inculta" de que falou Alain Bloom é uma cultura que não se integra num projecto humanista, que funciona como narcótico.

A função social da cultura avalia-se pelo valor acrescentado que consegue desenvolver: potencializar competências, educar a sensibilidade, impedir que cada indivíduo se feche no seu próprio egoísmo e que o vazio de esperança não culmine na depressão sem sonho ou na violência gratuita.

Naturalmente, há quem considere que acontece com a cultura o que aconteceu com Camões: a falar de Camões muita gente ficou rica, enquanto Camões morreu na miséria. E esse mal só pode ser evitado com a louvável coragem de pôr termo a uma produção cultural subsidio-dependente da promiscuidade política. Mas essa circunstância não pode ser generalizada.


Aliás, um regulamento que nega subsídios às organizações culturais que critiquem a gestão autárquica é, pelo menos, imoral, e cai, exagerando, na subsidio-dependência da promiscuidade política que diz, paradoxalmente, evitar. A crítica é um imperativo de consciência que faz parte dos deveres do exercício da cidadania e é “chocante” impedi-la a troco de subsídios.

Subsidiar (com critérios!) os promotores de eventos culturais não é "pão tirado à boca" da maioria, mas é investir, propiciando ao espírito colectivo o alimento necessário à produção de critérios do bom gosto que permitam reconhecer valores, lutar contra a iliteracia e desenvolver uma cidadania das convicções responsáveis. Obviamente, não são multidões circunstanciais que colherão de imediato tais benefícios.

Temos de ter presente que os melhores caminhos foram sempre desbravados por elites (o que não quer dizer defender o elitismo!). E, na política, gerir a "coisa" pública contra os que, honestamente, procuram a excelência, acabará, como a história nos tem ensinado, por não agradar nem a gregos nem a troianos. E isso não é bom para ninguém.

Será que Rui Rio não entende isto?!...

Comments:
Eu entendi e, digo-lhe, está sublime! Gostei muito deste seu texto. Lê-lo-ei, ainda, uma vez mais.
ln
 
Obrigado, mas há sempre a possibilidade de achegas.
 
As achegas só fazem sentido quando são isso mesmo: achegas.
Não é, porém, o caso. Nada de útil tenho a acrescentar ao seu texto. Gostei, simplesmente, e concordo com a visão de cultura que ele retrata, quer no realce da função soical (importância vital) que lhe deu quer na forma como entende que deve ser vista por quem exerce funções politicas.
ln
 
Acabo de ler o incursões e, concluo, foi "mauzinho" não ter-se solidarizado na oferenda dos 20 euros!!!
Que raio, eram só 20€, custava alguma coisa?? ehehehehehe

Como vê, a cultura não é vista, nem sentida, como uma obrigação ou responsabilidade estatal.
Num país onde se passa fome, onde há desemprego, onde há falta a alfabetização, etc, pensar em poesia é sacrilégio!! E quase apetece deixar de explicar ou de refutar o que não se quer entender!!
Também lá, no incursões, subscrevo o que escreveu.
ln
 
Obrigado. Naturalmente, ficamos contentes, quando sentimos que as nossas posições têm acolhimento. Mas nunca quis ter a linha justa. Simplesmente, porque a linha justa foi, históricamente, responsável, por muitas crueldades. Basta-me dizer o que penso e sentir que há mais gente que pensa como eu. Nem amuo, quando outros pensam de modo diferente. Quando dava aulas e me diziam «é assim!...», eu cortva logo e dizia: nunca digas que é assim, o melhor é dizer penso que...




um abraço
 
Curioso que eu tenho esse tique, defeito, como queira chamar-lhe. Utilizo algumas vezes a expressão "é assim". Não tanto porque queira expressar que o que digo ou penso está certo mas, talvez, por (mau) hábito. Quem sabe não passo, no futuro, a lembrar-me disto e passo a evitá-la. Opto, então, pela outra: Penso que o primo é um bom homem.

ln
 
Só agora reparei no elogio. Faço esforços para ser uma pessoa de bem e de bons costumes.
 
Importa-me mais que seja uma pessoa de bem do que, propriamente, de bons costumes.
Com maior ou menor nuance (mas sem dúvida com maior intelectualidade do seu lado) estou convencida que o meu conceito de "bem" não será muito dispar do seu.
Logo, sabê-lo pessoa de bem basta-me.
Já o conceito de "bons costumes" presta-se, penso eu, a maiores ambivalências e dúvidas. O que é um bom costume para o primo, ou para o meio que o envolve, pode não o ser para mim e vice versa. Os bons costumes são, na minha óptica, muito variáveis.
ln
 
Está certo, mas compreenderá que bons costumes também significa nunca trair amigo, nunca lesar interesses de terceiros, assumir compromissos, respeitar os outros e ser grato (virtude que está a desaparecer)por quem é simpatico, como é meu dever ser para consigo.

Um abraço.
 
Eis que chegou o momento de discordar, peremptoriamente, de si. (eheheheeh)Estou a brincar mas a falar, também, muito a sério.

Não trair amigos (devo dizer-lhe que a confiança, a lealdade e frontalidade são as qualidades que mais aprecio e exigo a quem quer ser meu amigo - porque é dessa forma, e não de outra, que eu retribuo)não é um bom costume. É para mim, deveria ser igualmente para os outros, um imperativo de relacionamento - o da amizade. Se não for assim, se falham aqueles ingredientes, não falamos sequer de amizade. Ou seja, a não traição, o respeito pelos outros, a não lesão dos interesses dos outros não pode, perdoe-me, ser catalogada como bom costume. `São valores demasiado prciosos para não serem elevados à categoria de principios básicos, elementares, supra costumeiros, etc.
São, na minha perspectiva, valores de carácter, de personalidade, de integridade de espírito e pensamento. São, em suma, a génese e matéria da pessoa humana.
ln.

ps: penso que compliquei e não disse de forma clara e inequívoca o que pretendia. É a fome, vou almoçar. Boa tarde, primo.
ln
 
Ah! e não impende sobre si qualquer dever de gratidão para comigo. A existir que seja não pela simpatia, que obviamente tenho por si, mas pelo diálogo, sempre pessoalmente profícuo como já anteriormente lhe disse, que conseguimos estabelecer aqui nas caixinhas. É o diálogo e a capacidade de conversarmos, ainda que pela escrita, que deve ser motivo de júbilo.
ln
 
Concordo. A gratidão é um sentimento de reconhecimento e não de mero agradecimento.
 
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