sexta-feira, março 02, 2007

 

A mentira


Como se deve mentir?meditava Kornél Esti.

A psicologia experimental sugere que, quando queremos ter pretextos, devemo-nos referir a factos que a todo momento aparecem na vida. Se, por exemplo, somos convidados para jantar e não temos vontade de ir, devemos buscar uma doença inocente: dor de cabeça, resfriado etc. Como essas são as doenças mais frequentes, é óbvio que — dentro da lei das probabilidades — acreditarão.

(…) As mentiras querem ser verosímeis — é esse o seu sinal de reconhecimento — e assim, quando as pessoas ouvem um absurdo tão improvável, tão audaz, a última coisa que pensariam é que estão ouvindo uma mentira, porque essas mentiras são tão transparentes, como em geral são as mentiras, mas as mais imbecis mentiras já são tão imbecis, que já nem são mentiras.

(…)Aquele que chega tarde a uma reunião pode jurar que teve uma visita inesperada. Ninguém lhe vai dar ouvidos. Mas se o indivíduo disser que atropelou um cachorro com o seu carro — um lindo filhote de raça, que mal completara um ano — e que o levou imediatamente o cachorro para a Faculdade de Veterinária, e que ele lá faleceu na mesa de operações, apesar de implantes e demais tentativas de salvamento, então a mentira brilhará sob a luz da aventura e da verdade. Só o inverosímil é realmente verosímil, só o inacreditável é realmente acreditado.


(…) À parte devo falar das mulheres. Elas não mentem — como equivocadamente se anuncia —, apenas ressaltam uma parte da verdade. Quando uma mulher tem um encontro na Ilha das Margaridas (Ilha no Danúbio, entre Buda e Pest ), não diz que ficou em casa tricotando, mas sim que foi passear nas margens do Danúbio. Qual é a explicação para isso? É que a ilha fica de facto no Danúbio, e o próprio passeio está próximo à verdade, com o adendo, que obviamente não é mencionado, de que não passeou sozinha. Em toda a mentira feminina existe um pingo de verdade. Esta é a base moral de suas mentiras. E é por isso que são perigosas. Fincam seus pés num minúsculo espaço de terra, e defendem a sua mentira com tanta convicção, resolução e ardor bem intencionado como se estivessem defendendo a verdade. É impossível tirá-las desse lugar. Os poucos factos são plasticamente ajustados aos factos que não existem. Confesso que muitas vezes consigo admirar suas mentiras, como admiro sua leveza, suas proporções, suas delicadas nuances, como as de uma poesia. São perfeitas no seu género.

Fonte: Dezsö Kosztolányi. Tradução do original húngaro por Ladislao Szabo. Coleção Leste. São Paulo: Editora 34, 1996.

Obs. Recortes de um e-mail enviado por Amélia Pais

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